segunda-feira, 31 de março de 2014

Milton Nascimento - Minas (1975) e Geraes (1976)



"Se depois de quase quatro décadas ainda permanecer válida a informação, reparem que o disco Minas tem nas duas únicas sílabas de seu título, as primeiras do nome e sobrenome artísticos de Milton Nascimento. Essa coincidência foi notada pela inocência ladina do menino Rúbio que ainda naquele 1975 receberia como agradecimento oficial pela inspiração, a dedicatória de um dos álbuns mais importantes de Milton Nascimento.

Diga-se de passagem, o disco é povoado pela manifestação jovial da primeira idade. Num álbum tão intenso em significados e belezas quanto aqueles anos de chumbo o eram por autoritarismo e violência, alguns desses intervalos para o recreio soavam ao longo de sua audição como que para resgatar do pesadelo a criança adormecida em algum canto de cada brasileiro. Realmente tornava-se ainda melhor ouvir Minas do alto da pureza de um galho de árvore nalgum quintal de nossas memórias meninas.
Talvez com essa intenção, um coro infantil nos leva pela mão até o belo tema instrumental de abertura, “Minas”, do pernambucano Novelli. O vocalise e o violão do artista nos inserem no contexto do disco preparando-nos a viagem através das Minas de Milton Nascimento. Revelando finalmente de onde provinha aquela linha melódica, os meninos insurgirão definitivamente em “Paula e Bebeto” – a décima faixa que inaugura a parceria de Milton Nascimento com Caetano Veloso. Há que se reconhecer que sempre fora a coragem uma das coisas mais admiráveis no Clube da Esquina. Se tivéssemos essa liberdade, assim chamaríamos então mais uma prática de muitas das santas inocências de um movimento que aqui se permite abrir o disco de um dos maiores cantores de todos os tempos da MPB, com uma faixa desprovida de letra. Não foi à toa que essa agremiação etérea ganhou mundo a partir de um pedaço de calçada.

Minas, contudo, tem outros vários diamantes. Um deles é “Fé cega faca amolada”, diamantina em todos os sentidos. Da combinação perfeita entre a melodia de Milton e a letra de Ronaldo Bastos, partimos embarcados no arranjo que sustenta um duelo de “bês” entre Bituca e Beto (Guedes) mediado pelo o violão de Toninho Horta, até o interlúdio rock-jazz sensacional que, como reza a tradição do Clube, é um momento instrumental que vale por si só. Em seguida, uma sequência de tirar o fôlego.

Começa em “Beijo partido” de Toninho Horta, a quem poucas vezes veríamos assinando sozinho uma canção. Considerando a definição técnica de “canção” como o conjunto de melodia e letra, o que se vê ao longo da carreira desse admirável compositor e músico é que poucas vezes suas autônomas seis cordas precisariam lançar mão de palavras próprias para se expressarem. Esse beijo nos é dado para selar uma dessas exceções. A canção de abandono que se tornaria clássica, é linda por si só, mas para os iniciados em harmonia é um banho renovador de acordes sequenciais do ourives Toninho Horta.

“Saudades dos aviões da Panair” de Milton e Fernando Brant, dá asas uníssonas aos nossos sonhos moleques de voar. Como num roteiro de Spielberg, por encanto um bonde cria asas para constatarmos a pequenez humana diante da obra perfeita de Deus. A melodia desce ladeiras, voa e esculpe nuvens com um barroco mineiro feito por seus autores impactados pela trágica e sublime trajetória do indivíduo pela vida. Pungente e incomum.  
Vamos agora festejar a costela que vai se quebrar em “Gran Circo” de Bituca e Márcio Borges. Debuta nela a cantora Fafá de Belém em um vocalise interlúdico que serve de repouso para a marcha brancaleônica da sina brasileira naquele eterno agosto político da década.

Encontramos um repouso nostálgico no ponto final de “Ponta de areia” dos mesmos Nascimento e Brant. O neodobrado parece ser executado das ruínas de um coreto para uma cidade fantasma onde a ferrovia que levava ao mar não passa mais. Uma beleza com gosto de mato e sal que eterniza o obscuro trecho férreo e, à sua maneira, mantém seus trilhos fincados no coração de Minas.          
Remanso ou cachoeira, seja o que for que se apresente depois da curva de rio de “Simples”, canção de Nelson Ângelo, será um belo cenário para fechar um disco e deixar aberto seu fluxo em direção ao mar. Mas antes disso, passamos pelo psiquismo jazzy de “Trastevere” - parceria de Ronaldo Bastos com Milton onde o rio romano Tibre corta as montanhas de Minas e pelo idílico convite à felicidade a dois de “Leila” – só de Bituca. Há ainda o pós-feminismo escondido em “Idolatrada”, mais uma grande parceria de Nascimento com Brant que a um tempo só reverencia e protege-se dos poderes da mulher sobre a fragilidade masculina.

“Paula e Bebeto” é uma quintessência parda no álbum. Citada melodicamente pelo coro da meninada desde a abertura do disco, ela emerge em várias faixas como que para mostrar que sua importância sempre estivera subterraneamente presente. A abertura na música dessa estrada natural ligando Minas de Milton a Bahia de Caetano aqui se dá pela primeira vez. O encontro de fronteiras corriqueiro em livros de geografia não poderia passar em brancas nuvens em nosso cancioneiro, até porque se daria de maneira bissexta por apenas mais cinco vezes na história da MPB. A bela trama romântica de “Paula e Bebeto” valeria tanto à pena que seria ainda reproduzida pelas vozes de Gal Costa e Geraldo Azevedo mantendo um curioso acento nordestino na melodia cunhada por um violão mineiro.
   
Enorme e misterioso como a unidade federativa, o álbum Minas traz os elementos da estética do movimento clubistaperenes e estabelecidos, mas nem por isso, menos arrebatadores. O alcance da maturidade musical deste exuberante grupo de compositores, músicos e amigos aliados a um dos mais orgânicos conjuntos de repertório já selecionado, fazem de Minas um state of the art do movimento e da obra fonográfica de Milton Nascimento.




Geraes completa Minas. Como se não bastasse usar uma canção do mesmo Nelson Ângelo que encerra Minas para atar a “bilogia” com a cândida “Fazenda” em sua primeira faixa, os sinais evidentes de continuidade começam visuais com o despretensioso e belo desenho do próprio Milton retratando um trenzinho cruzando um vale sob o sol usado no encarte de Minas, aparecendo agora como capa de Geraes. A opção vintage pela grafia antiga do estado mineiro pode indicar uma fidelidade inconfidente de Milton às raízes, contudo, sem deixar de pluga-las à fotossíntese libertária de luzes externas.  E elas surgem de todos os lados.

Há a presença quase mística da argentina Mercedes Sosa no clássico da chilena Violeta Parra, “Volver a los 17”.  Os belos perfis femininos de Mercedes – combativa oponente da ditadura militar em seu país e Violeta – brilhante compositora atormentada que se suicidara em 67, eram antes praticamente desconhecidos do público jovem no Brasil.  Amparados pela ponte erguida até los hermanos desde o álbum original do Clube da Esquina, a troca de flâmulas continua nas extraordinárias “Caldera” e “Promessas de sol” – a segunda, parceria épica de Milton e Fernando Brant e a primeira, composta por Nelson Araya – violonista líder do grupo chileno Água que é participação especial nas duas faixas. Dois monumentos musicais latino-americanos revelando que nossas identidades continentais não se limitavam apenas à deformação sórdida das ditaduras políticas vigentes nos dois países.

Para desbaratar a tacanha visão militarista do socialismo patrulhado com sádico apetite em cada disco emepebista da época, a fé brilha à margem de tudo em “Calixbento”. Uma adaptação daquelas que só mesmo um folclorista como Tavinho Moura, conseguiria elaborar. Tambores, violão e viola interioranos vão nos guiando até onde Deus costuma gostar de fazer morada: na música popular. Compará-la com o que se chama de “música gospel” hoje no país, seria praticamente uma blasfêmia. Por outro lado, não há como negar o mote religioso coerente com a formação cultural mineira e ao mesmo tempo constatar que uma boa canção pode inspirar-se na fé usando o refinamento da música popular e, ainda assim, conseguir êxito até em ouvidos pagãos. Mistérios da canção.  

Assassinado à bala pela PM durante uma passeata dentro de um restaurante carioca que tinha o irônico nome de Calabouço, o estudante Edson Luís de Lima Souto comoveu o país em 28 de março de 1968. O corpo deste primeiro estudante brasileiro assassinado pela ditadura verde-oliva foi, no calor do drama de sua morte, carregado pelos colegas em uma gigantesca passeata-procissão até a Assembleia Legislativa, onde seria velado fazendo a memória de seu martírio e causa serem respeitados à força pelo autoritarismo do Presidente Costa e Silva. “Menino” põe novamente o dedo nesta ferida repartindo com todos a responsabilidade passiva pela violência que se repetira na sociedade brasileira com incidência progressivamente aumentada desde a morte do menino mártir até a publicação do álbum.

Rescendendo aos mesmos perfumes bucólicos de “Fazenda”, “Carro de boi” (de Maurício Tapajós e Cacaso) trilha a mesma estrada preguiçosa de “Lua girou” – bela adaptação do folclore feita por Milton Nascimento. “Viver de amor” se contrapõe a esse cenário com suas tintas mais cosmopolitas. Ela é o resultado da melodia de Toninho Horta letrada por Ronaldo Bastos – o “estrangeiro” fluminense do clube mineiro.

Outra fluminense, não de Niterói como Bastos, mas de Valença, brilha como joia de ébano em Minas.  Com seus 75 anos de raça e juventude, Clementina de Jesus quebra tudo ao lado de Bituca eternizando o “Circo Marimbondo” erigido pela pena do poeta, parceiro de Milton na canção e produtor do disco, Ronaldo Bastos.
Retribuindo a participação “acidental” de Milton em Meus Caros Amigos provocada pela audição ocasional do ensaio de Chico com Francis Hime para a gravação, o choque estelar com Chico Buarque é “formalmente” bisado em Minas. O dueto acontece novamente em “O que será” – musica que Milton declarara à imprensa que gostaria de ter composto. Entre as três versões criadas por Chico para o filme “Dona Flor e seus dois maridos”, a intensa À flor da pele foi a escolhida. Abençoado seja o anjo que provocou esse encontro que ainda propiciaria aos nossos ouvidos plebeus as canções “Primeiro de Maio” e “Cio da terra” entre as cinco que Chico e Milton comporiam juntos.

É incomum na obra de qualquer artista a produção de duas obras-primas consecutivas, aparentemente isso não se aplica a Milton Nascimento e como o desenho circular do sol traçado em sua capa, o disco encerra onde tudo começa. A melodia de Novelli que abrira Minas ressurge traduzida em palavras pelo poeta Ronaldo Bastos. O coração aberto ao vento em flautas e violão assenta na eternidade as vinte e três canções de Minas Geraes como se eterno fosse não aquilo que perdura por todo o tempo, mas o que tem o dom de sequer considerar sua existência. "

(http://deusamusica.tumblr.com/post/47791389596/minas-1975-geraes-1976-milton-nascimento-se)

1. Minas
    (Novelli) Instrumental- Música incidental: “Paula e Bebeto”
2. Fé Cega Faca Amolada – Participação de Beto Guedes
    (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
3. Beijo Partido – Participação de Toninho Horta
    (Toninho Horta)
4. Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar)
    (Milton Nascimento / Fernando Brant)- Música incidental: “Paula e Bebeto”
5. Gran Circo
    (Milton Nascimento / Márcio Borges)
6. Ponta de Areia
    (Milton Nascimento / Fernando Brant)
7. Trastevere
    (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
8. Idolatrada
    (Milton Nascimento / Fernando Brant) - Música incidental: “Paula e Bebeto”
9. Leila (Venha Ser Feliz)
    (Milton Nascimento) - Instrumental
10. Paula e Bebeto
    (Milton Nascimento / Caetano Veloso)
11. Simples
    (Nelson Ângelo)

Gravado nos Estúdio EMI-ODEON – Rio de Janeiro – 1975/ Gravação Toninho e Dacy/ Assistente de gravação Seginho/ Remixagem Nivaldo Duarte’/ Corte Osmar Furtado/ Montagem Ladimar/ Produção artística Ronaldo Bastos/ Ambientação musical Wagner Tiso e Milton Nascimento/ Assistente de produção Toninho Vicente/ Contra-regra Ivanzinho/ Cafezinho Seu Nonato/ Capa Cafi, Noguchi e Ronaldo Bastos/ Lay out-arte Noguchi, Wanderlen e Barbosa/ Foto Cafi/ Desenho Milton Nascimento

Geraes
1. Fazenda
    (Nelson Ângelo)
2. Calix Bento
    (Tradicional / Adpt. Tavinho Moura)
3. Volver a Los 17 – Participação de Mercedes Sosa
    (Violeta Parra)
4. Menino
    (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
5. O Que Será (À Flor da Pele) – Participação de Chico Buarque
    (Chico Buarque)
6. Carro de Boi
    (Maurício Tapajós / Cacaso)
7. Caldera – Participação de Grupo Água
    (Nelson Araya)
8. Promessas do Sol – Participação de Grupo Água
    (Milton Nascimento / Fernando Brant)
9. Viver de Amor
    (Toninho Horta / Ronaldo Bastos)
10. Lua Girou
    (Tradicional / Adpt. Milton Nascimento)
11. Circo Marimbondo – Participação de Clementina de Jesus
    (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos)
12. Minas Gerais
    (Novelli / Ronaldo Bastos)

Gravado nos Estúdios EMI-ODEON – Rio de Janeiro – 1976/ Produtor fonográfico EMI Fonográfica, Industrial e Eletrônica S.A./ Direção artística Milton Miranda/ Direção de Produção Mariozinho Rocha/ Supervisão Musical Milton Nascimento/ Produção Ronaldo Bastos/ Gravação Roberto e Dacy/ Remixagem Nivaldo Duarte/ Corte Osmar Furtado/ Montagem Ladimar/ Arranjos de base Milton and Friends/ Assistente de produção Toninho Vicente/ Agente Paulo Pilla/ Contra-regra Ivanzinho/ Cafezinho Nonato/ Capa Cafi, Noguchi e Ronaldo Bastos/ Fotos Cafi/ Desenho Milton Nascimento


Disco (duplo) em excelente estado e e capa (dupla, com todas as letras) em ótimo estado. Relativamente raro.
Edição Limitada - numerado, contendo os discos "Minas" e "Geraes".
Saindo por R$ 60,00

Nenhum comentário:

Postar um comentário