quarta-feira, 4 de setembro de 2013

João Bosco - Galos de Briga (76)



"A receita deu certo: o violão mineiro do ex-estudante de Engenharia João Bosco mais a poesia precisa do psiquiatra e baterista Aldir Blanc resultaram em "Galos de briga", lançado pela gravadora RCA Victor em 1976. Respaldados pelos arranjos do pianista Luiz Eça e pela coordenação do consagrado Rildo Hora, a dupla que marcou época na história da MPB atingiu seu auge com esta obra, em crônicas urbanas musicais que devem ser ouvidas com toda a atenção, além da curtição. Cada qual uma pequena história, com personagens e elementos no limite entre o humor e o drama, ainda identificáveis com a atualidade.

Naquele ano, os processos de divórcio (hoje tão comuns) ainda eram um projeto de lei em discussão polêmica no Congresso. Mas as desavenças conjugais já estavam sendo muito bem observadas e explicitadas em "Incompatibilidade de Gênios", primeira faixa do disco: um cidadão desesperado com os desmandos da esposa narrando sua desgraça a um advogado, num samba que mereceu um bom registro de Clementina de Jesus ("Dotô, se eu peço feijão, ela deixa salgar / Calor, mas veste casaco pra me atazanar / E ontem, sonhando comigo mandou eu jogar / No burro / E deu na cabeça, a centena e o milhar / Quero me separar!"). A música seguinte, "Gol anulado", trata do mesmo assunto, mas com um teor que soa politicamente incorreto: um vascaíno que parte para a agressão com a mulher, após a "traição" de descobri-la rubro-negra, num tempo em que Zico já aprontava na grande área (a gravação começa com gritos de torcida). O verso final é uma comparação muito inteligente produzida por Blanc: "Eu aprendi que a alegria / De quem está apaixonado / É como a falsa euforia / De um gol anulado".

As decepções de amor continuam em mais duas faixas: "Vida noturna" traz o monólogo de um boêmio que procura não se deixar abater, apesar de ter brigado com a namorada ("Eu tenho num bolso uma carta / Uma estúpida esponja de pó-de-arroz / E um retrato, meu e dela / Que vale muito mais do que nós dois"), e ainda na quilométrica e animada "Feminismo no Estácio" ("Saiu só com a roupa do corpo num toró danado / Foi pro cafundó do judas / Apanhou um resfriado... É de amargar, é de amargar / Mas ela é maior e vacinada").

Bosco e Blanc enfrentaram um momento difícil na divulgação de "Galos de briga", exatamente com a música mais conhecida do disco: "O ronco da cuíca", crítica engraçada e sambista ao autoritarismo da época com uma expressão popular ("É coisa dos home!") que caracteriza o abuso de poder, venha de onde vier. Os "home" agiram, tal qual diz a letra. Pouco tempo após o lançamento, os dois tomaram conhecimento de que o samba estava censurado para execução em rádio e TV.

Há histórias mais bonitas do que a violência da ditadura contra a arte: a participação (e a boa improvisação vocal) de Ângela Maria em "Miss Suéter", no papel de uma decadente atriz que vai parar no antigo INPS (atual INSS) e que ainda tem um momento de brilho na lembrança do amante: "Guardarei para sempre seu retrato de miss com cetro e coroa / Com a dedicatória que ela, em letra miúda insistiu em fazer: 'Pra que os olhos relembrem quando o teu coração infiel esquecer' / Um beijo, Margot". Outro ponto especial é a gaita do instrumentista belga Toots Thielemans marcando a letra existencialista de "Transversal do tempo", expressão que chegou a nomear um dos discos de Elis Regina: "As pobres coisas que eu sei / Podem morrer, mas eu espero / Como se houvesse um sinal / Sem sair do amarelo".

Um momento interessante é o erotismo praticamente despudorado de "Latin lover". Além da bela introdução de baixo e violão, a cantoria de João Bosco foi fiel ao espírito da música, no papel do Don Juan que, após um pouco de esforço, recorda de forma poética a primeira vez, depois da parceira mostrar "um sinal adquirido numa queda de patins em Paquetá", com direito à sussuros de "Mostra... Doeu? Ainda dói?". E o compositor não se avexa em por a voz a serviço de uma alegoria estilo Carmem Miranda na humorística "Rumbando": "Ai rumba, rumbeira, sacode os balangandãs / Ajeita as bananas, balança os badalos / Badala e obrigada / Obrigada minhas fãs". Os pistons e trumpetes presentes ajudam a compor o clima festivo.

Voltando ao assunto censura, o disco é uma mostra de como os letristas daquela época precisavam recorrer às metáforas (totais sentidos figurados) para escapar da "tesoura" dos censores do Regime Militar. Aldir Blanc agiu desta forma em pelo menos três canções: no fado que dá nome à obra ("O rubro das brigas duras / Dos galos de fogo puro / Rubro gengivas de ódio / Antes das manchas no muro"); em o "O cavaleiro e os moinhos" ("Acreditar / Na existência dourada do sol / Mesmo que em plena boca / Nos bata o açoite contínuo da noite") e na última faixa do lp, a desesperançada marcha "O rancho da goiabada". Com arranjo de Radamés Gnatalli e coro de todos os envolvidos na gravação, a música retrata um grande delírio carnavalesco dos excluídos: "São pais-de-santo, paus-de-arara, são passistas / São flagelados, são pingentes, balconistas / Palhaços, marcianos, canibais / Lírios, pirados / Dançando-dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria / Dos faraós embalsamados".

A capa foi ilustrada pelo artista plástico Glauco Rodrigues. No fim, músico e poeta usam de sutil ironia ao se autodefinirem no encarte, em um anúncio de classificados de jornal com o seguinte texto: "Galos de briga: João e Aldir, finos profissionais, de aparência relativamente boa, calouros por vocação, expõem-se aos gongos da claque média. Clowns!"

(http://www.sidneyrezende.com/noticia/118394+galos+de+briga+as+cronicas+musicais+urbanas+de+joao+bosco+e+aldir+blanc)


Disco e capa em ótimo estado; com encarte.
Edição Original de 1976.
Saindo por R$ 20,00




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